Na autobiografia, líder do Foo Fighters fala da sua passagem no Scream e da sua vivência na cena punk/hardcore norte americana nos anos 1980
Por Vinícius Vieira
Todo artista renomado e reconhecido mundialmente, começou a sua carreira como um artista independente. É justamente essa história que Dave Grohl, líder do Foo Fighters, faz questão de contar na sua autobiografia O Contador de Histórias: Memórias de Vida e Música, lançada no Brasil no dia 7 de janeiro, pela Editora Intrínseca.
Nas 414 páginas do livro, Dave Grohl foge do padrão de uma biografia comum, com início, meio e fim, que conta desde o nascimento, até o momento atual de sua vida, pelo contrário, o livro funciona como uma perfeita conversa de botequim, na qual o autor vai contando passagens de sua vida, mesclando passado e presente, sempre com doses cavalares de música.
Conhecido por estar a frente do Foo Fighters por quase 27 anos, e também por sua passagem gloriosa em uma das bandas mais aclamadas dos últimos 30 anos, o Nirvana, Dave Grohl também é reconhecido por inúmeras parcerias com grandes nomes da música mundial, além de projetos marcantes como Probot e Them Crooked Vultures, este último contando com line up de luxo, com Josh Homme (Queens Of The Stone Age) nas guitarras e ninguém mais e ninguém menos que John Paul Jones do Led Zeppelin no baixo.
Porém, o grande deleite do livro é Dave Grohl narrando com imensos detalhes a sua formação no punk/hardcore, a sua passagem na célebre banda de hardcore Scream, formada em Washington DC, e a sua visão do cenário underground dos Estados Unidos na década de 1980, no mesmo momento em que bandas como Bad Brains, Minor Threat, Rites Of Spring, Fugazi, Hüsker Dü, Black Flag, entre outras, existiam e arrebentavam.
Separamos abaixo alguns dos melhores momentos do livro para você se deliciar
(Contém Spoiler)
Bateristas de punk/hardcore inspiraram grandes sucessos de Dave Grohl
Logo no primeiro capítulo do livro, DNA Não Mente, Dave Grohl presta uma homenagem aos bateristas que, segundo ele, “são heróis pouco celebrados da cena marginal do punk rock”, e começa uma lista citando grandes nomes como: Ivor Hanson (Embrace), Earl Hudson (Bad Brains), Jeff Nelson (Teen Idles e Minor Threat), Bill Stevenson (Descendents, Black Flag e All), Reed Mullin (Corrosion of Conformity), D.H. Peligro (Dead Kennedys) e John Wright (NoMeansNo, The Hanson Brothers, DOA e Showbusiness Giants).
Inclusive, na página seguinte, Grohl revela “Até hoje dá pra ouvir ecos do trabalho deles no meu, com sua marca indelével surgindo em composições como Song for the Dead, do Queens Of The Stone Age, Monkey Wrench do Foo Fighters, ou até mesmo Smells Like Teen Spirit do Nirvana”.
Dave Grohl já revelou em uma entrevista que a famosa introdução de bateria de Smells Like Teen Spirit do Nirvana, foi claramente inspirada na introdução de bateria de How Low Can a Punk Get do Bad Brains.
Em 2015, durante a Broken Leg Tour [Turnê da Perna Quebrada], a turnê do Foo Fighters na qual o Dave Grohl fez os shows sentado no trono, após a queda no palco que fraturou a sua perna, a banda recebeu em um dos shows Darryl Jenifer e Dr. Know, baixista e guitarrista, respectivamente, do Bad Brains, e juntos tocaram uma versão de How Low Can a Punk Get.
Enquanto a introdução de Song for the Dead do Queens of the Stone Age, presente no disco Songs for the Deaf (2002), que teve as baterias gravadas por Grohl, é totalmente inspirada em Slip It In do Black Flag, conforme Dave Grohl conta nessa entrevista, no qual ele declara o seu amor por Bill Stevenson. Aliás, Grohl é um dos entrevistados no documentário Filmage, que conta a história das duas bandas de Stevenson, Descendents e All.
O primeiro show de punk rock
No quarto capítulo do livro, intitulado Tracey é uma Punk Rocker, Grohl volta no tempo e conta a história de quando ele, com 13 anos de idade, junto com a sua mãe e a sua irmã foram para Chicago visitar alguns amigos e lá ele teve contato com a sua amiga (que carinhosamente ele chama de prima) Tracey, que na época estava em uma fase punk rock: “Com botas Doc Marten lustrosas, calça preta colada, camiseta do Anti-Pasti e cabeça raspada, ela era assustadora mas gloriosa imagem da rebeldia”.
Dave recorda que foi com a prima até o seu quarto e lá ela mostrou a coleção de discos de bandas cujos os nomes ele nunca tinha ouvido falar na época: Misfits, Dead Kennedys, Bad Brains, Germs, Naked Raygun, Black Flag, Wire, Minor Threat, GBH, Discharge, The Effigies, entre outros. Naquele mesmo dia, Tracey levou Dave para assistir o seu primeiro show de punk rock, o show da banda punk local Naked Raygun, que rolou no bar Cubby Bear, em frente ao estádio de beisebol Wrigley Field, casa do time Chicago Cubs.
Dave relembra como foi a noite histórica: “Quando começou, foi como se acendessem um barril de pólvora no pequeno recinto. Um frenesi de braços, pernas e volume ensurdecedor, com pessoas subindo umas nas outras, se batendo e se jogando do palco, cantando as letras de cada música com punhos cerrados feito um exército de fiéis soldados sônicos”. No mesmo dia, Grohl comprou na banquinha do merchandise da banda o seu primeiro disco de punk rock, Flammable Solid, o compacto de estreia do Naked Raygun.
Muitos anos depois, em 2014, o Foo Fighters se apresentou no mesmo Cubby Bear, em Chicago, enquanto divulgava a série Sonic Highways, e na companhia do vocalista do Naked Raygun, Jeff Pezzati, tocaram Surf Combat, o clássico da banda que inseriu Dave Grohl ao punk rock.
O show completo, que também teve a participação de Rick Nielson do Cheap Trick, pode ser conferido abaixo.
Entrada no Scream e começo da vida no underground
Antes de integrar o Scream, que segundo o próprio Dave Grohl era “a banda mais maneira de punk rock hardcore de Washington”, o jovem baterista fez parte das bandas Freak Baby, Mission Impossible e Dain Bramage, mas após ver um cartaz em uma loja de instrumentos musicais que dizia: “Scream procura baterista. Ligar para Franz”, que a sua vida mudou completamente.
Grohl ligou para Franz Stahl, guitarrista da banda (que posteriormente assumiria a segunda guitarra do Foo Fighters entre 1997 e 1999) e após um teste realizado só entre os dois tocando todo repertório da banda, ele ficou com a vaga e o show de estreia foi no dia 25 de julho de 1987, em um evento beneficente para a Anistia Internacional. Na plateia estavam integrantes do Minor Threat, Fugazi e do Rites of Spring, relembra Grohl: “Eles estavam de olho para ver se eu dava conta de seguir os passos do grande Kent Stax [antigo baterista do Scream]”.
Após esse batismo de fogo, Grohl caiu na estrada com os seus novos companheiros de banda e na medida que as páginas do livro vão avançando, personagens lendários vão aparecendo como Harley Flanagan (Cro-Mags) - que Dave Grohl afirma: “O álbum The Age Of Quarrel deles estava na minha lista de dez melhores discos de punk rock de todos os tempos” - e John Brannon, vocalista do Laughing Hyenas e Negative Approach, sendo essa última, segundo Grohl “Minha banda favorita de Detroit”.
E muito antes do Foo Fighters pensar em existir, o Scream fez um show em Tacoma, no estado de Washington, com uma banda chamada Diddly Squat, cujo o jovem baixista chamado Nate Mendel, seria parceiro de Dave Grohl por décadas na sua banda principal anos depois.
Tocando com o Iggy Pop
Se hoje Dave Grohl é conhecido por fazer parcerias e participações com grande nomes da música mundial, em uma lista longa e diversa que vai de Paul McCartney, passando por Mick Jagger, David Bowie, Lemmy Kilmister, Tom Petty, Joan Jett, Max Cavalera, Neil Young, Bruce Springsteen, John Fogerty, entre muitos outros, saiba que lá nos 1990, ainda como baterista do Scream, Grohl teve a oportunidade de ser baterista do Iggy Pop por uma noite.
Tudo aconteceu na cidade de Toronto, no Canadá. O Scream iria se apresentar à noite na casa de shows Rivoli, e em um determinado momento, Grohl percebeu que o barman estava colando cartazes promocionais do Brick by Brick, o disco que Iggy Pop lançava na época. Curioso, ele perguntou o porquê dos cartazes e foi informado que Iggy Pop tocaria ali, naquela tarde, em um show exclusivo para os executivos da gravadora.
Quando Grohl estava do lado de fora da casa, dentro da van da banda, alguém bateu na janela e disse: “Qual de vocês é o baterista? Quer tocar com o Iggy Pop?”. Rapidamente, o jovem Dave Grohl aceitou o convite, e com Iggy tocando guitarra, os dois juntos ensaiaram 1969 e I Wanna Be Your Dog do Stooges, além de I Won’t Crap Out, música que estava no disco novo e que Grohl nem havia ouvido ainda, mas tentou acompanhar da melhor forma possível. Iggy Pop gostou tanto do ensaio que disse: “Beleza, a gente começa às 18h”. Grohl ficou perplexo, mas alertou que eles precisavam de um baixista e correu na van para chamar o seu companheiro de Scream, Skeeter Thompson, para completar a banda que foi apoio de Iggy Pop por um dia.
Perrengues, fome e mais perrengues
São nos capítulos Tomara que você seja bom e Cada dia é uma página em branco, que Dave Grohl escancara todos os perrengues que ele passou enquanto era baterista do Scream e um músico inserido na cena underground. São páginas e mais páginas de um jovem Grohl dividindo uma van minúscula com os companheiros de banda, dormindo em saco de dormir na casa de amigos ou de pessoas que tinham acabado de conhecer naquela noite, além de uma alimentação extremamente precária, ou até mesmo a falta dela.
Quando a turnê do Scream chegou até a Europa, além do frio, a banda teve que enfrentar um exército de skinheads, viciados agressivos e bêbados que queriam roubar os instrumentos da banda, tudo isso em noites distintas, e mesmo diante de todas essas adversidades, Grohl não desistiu do seu sonho de ser músico: “Preferia ficar delirando num apartamentinho na Espanha, tremendo numa poça do meu próprio suor com uma gripe forte enquanto ouvia a agitação do bairro de Las Ramblas, em Barcelona. Preferia dormir no palco de uma boate fria na Suécia, depois do show, com paramédicos chegando às pressas para salvar a vida de alguém que estava morrendo de overdose”.
Em 1990, quando Dave Grohl finalmente entrou para Nirvana e se mudou para o apartamento minúsculo e imundo de Kurt Cobain em Olympia, Washington, mesmo com o contrato da empresa de agenciamento Gold Mountain, os perrengues e a fome continuavam. Grohl dormia dentro de um saco de dormir em cima do sofá e sua alimentação diária se consistia em três espetos de salsicha empanada que eram vendidos a 99 centavos na loja de conveniência no posto de gasolina do outro lado rua, e segundo o próprio, eles eram racionados: “O segredo era comer um no café da manhã (ao meio-dia) e deixar os outros dois para um jantar depois do ensaio, dando forças para seguir até que as pontadas de dor da fome começassem de novo e eu fosse obrigado a fazer uma nova incursão vergonhosa à loja de conveniência com outra nota amassada de um dólar na mão”.
O Contador de Histórias: Memórias de Vida e Música já está à venda em todas as livrarias do país. Maiores informações no site oficial da Editora Intrínseca.
Esse livro é um deleite exatamente por ser como uma conversa com o próprio Grohl. Amei a matéria! ❤️